O que mudará se legalizados os jogos de azar no Brasil

Opinião I 14.03.22

Por: Magno José

Compartilhe:
Pamela Torres Villar e Roberta de Lima e Silva*

No último dia 24 de fevereiro, o Projeto de Lei nº 442/1991, de autoria do deputado Renato Vianna (MDB-SC)[3], que altera a Lei de Contravenções Penais (Lei nº 3688/1941), tornando legal a prática do que se convencionou chamar de jogos de azar, foi aprovado, por maioria, pela Câmara dos Deputados. Foram 246 votos a favor e 202 contra a proposta legislativa, que agora segue para o Senado Federal.

O Projeto de Lei, apresentado em maio de 1991, sofreu grandes entraves à sua tramitação, dado o objeto de sua regulamentação. Apesar da polêmica que o cerca, a justificativa de sua propositura é bastante clara: a tipificação penal motivada pela moralidade seletiva apenas se presta a alimentar o crime organizado, exercendo, portanto, o efeito contrário do que se pretende no que diz respeito à tão sonhada diminuição da criminalidade[4].

Embora a questão por ele tratada fosse de grande importância e magnitude, somente no ano de 2015, em atenção ao requerimento formulado pelo deputado Jaime Martins (PSD-MG), a Presidência determinou a criação de Comissão Especial que teria como objetivo elaborar parecer acerca do referido Projeto de Lei e, àquele tempo, todos os demais sobre a mesma temática a ele apensados[5].

A necessidade de fazê-lo, segundo o próprio parlamentar requerente, devia-se ao fato de que “em todo o mundo a questão foi regulamentada, gerando importante estímulo ao turismo, um grande número de empregos e uma significativa arrecadação que, no nosso caso, poderá ser usada na educação, na saúde, na assistência social e na preparação dos nossos jovens”; sob a perspectiva oposta, no “Brasil, onde não há regulamentação, o jogo é praticado irregularmente, na clandestinidade, de forma ilegal e sem arrecadação para o Estado”, em que pese o normal funcionamento e notável caráter arrecadatório das loterias federais e estaduais.

Após longo período de análise da matéria por parte da Comissão Especial, chegou-se ao texto final que em muito difere dos singelos dispositivos proibitivos existentes em nosso ordenamento jurídico até então, sobretudo aqueles contidos no capítulo das contravenções relativas à polícia de costumes.

Se mantido o texto nos termos em que aprovado pela Câmara dos Deputados, a exploração de jogos e apostas (cassinos, bingos, vídeo bingos, jogos online, jogo do bicho e apostas turfísticas) passará a ser permitida sob intensa normatização, controle e fiscalização da União Federal, mais especificamente do Ministério da Economia.

A exploração dos jogos e apostas será permitida em estabelecimentos físicos ou virtuais mediante prévia obtenção pelo interessado, pessoa jurídica obrigatoriamente constituída como sociedade anônima, com sede e administração no Brasil, de licença para atuar como operadora, esta que deve, ainda, contar com capital mínimo, a depender do segmento pelo qual optar desenvolver suas atividades. Para conferir viabilidade ao seu exercício, as operadoras deverão estar em conformidade com as regras estabelecidas para as sociedades em geral e em consonância com os atos regulamentares expedidos pelo Ministério da Economia.

Serão, também, exigidos registros de todos os dados decorrentes da exploração desta atividade, tais como os agentes dos jogos e apostas, máquinas, jogadores e apostadores, além das informações relativas ao pagamento dos prêmios, em sistema próprio, que poderão ser acessados e/ou compartilhados com a Administração Pública. Vale dizer, o novo regramento prevê expressamente a necessária observância da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018).

A alteração de objeto, denominação ou capital social, transferência ou alteração de controle, além de fusões, cisões ou incorporações, dependerão de prévia e expressa autorização do Ministério da Economia. Importantes alterações societárias — a exemplo, ingresso de novos acionistas, alcance ou aumento de participação qualificada – deverão ser informadas, podendo o órgão solicitar documentos e informações adicionais e, a depender do diagnóstico, determinar até mesmo o seu desfazimento.

As operadoras terão, ainda, seus balanços analisados pelo Ministério da Economia e se submeterão, periodicamente, a auditorias operacionais destinadas “à verificação da segurança, honestidade, confiabilidade, transparência e atualidade dos sistemas, máquinas de jogos e aposta, bem como sítios eletrônicos utilizados para a oferta de jogos e apostas”, realizadas por empresas de auditoria independentes ou entidades de autorregulação registradas perante a Administração para esse fim. Será exigida, também, a comprovação da origem lícita dos recursos utilizados na integralização do capital social, na aquisição de controle e de participação qualificada.

E, como não poderia deixar de ser, a arrecadação decorrente da exploração desta atividade será realizada através da Taxa de Fiscalização de Jogos e Apostas (Tafija), cujo valor, direcionado ao Tesouro Nacional, dependerá do segmento explorado, da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico Incidente Sobre a Comercialização de Jogos e Apostas (Cide-Jogos), que recairá sobre a receita bruta das exploradoras, desde que positiva, e do imposto sobre prêmios líquidos de valor igual ou superior a R$ 10.000.

As pessoas físicas relacionadas à atividade serão alvo do controle Estatal.

Os controladores e detentores de participação qualificada deverão ter reputação ilibada, aspecto este que será averiguado pelo Ministério da Economia, de modo que ao órgão deverá ser conferida autorização expressa para acesso a informações a seu respeito constantes de qualquer sistema público ou privado de cadastros de informações, inclusive sujeitas a sigilo constitucional ou legal. Poderão ser consideradas prejudiciais as investigações e ações penais, inclusive em jurisdição estrangeira.

O exercício de funções de administração das entidades operadoras caberá apenas àqueles com residência em solo nacional, com capacitação técnica para exercício do cargo e que não tenham em seu histórico condenação por improbidade administrativa, crime falimentar, sonegação fiscal, prevaricação, corrupção ativa ou passiva, concussão, peculato, crimes contra a economia popular, a fé pública, a propriedade ou o Sistema Financeiro Nacional, ou a pena criminal que vede, ainda que temporariamente, o acesso a cargos públicos. O(a) Administrador(a) não poderá ter a si aplicada a penalidade de suspensão para o exercício da função pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ou pelo Banco Central (BC), ser parte de processos envolvendo inadimplência e condutas afins e, por fim, não pode ter exercido o controle ou a administração, pelo período antecedente de 2 anos, de pessoa jurídica que tenha declarado insolvência, ato de liquidação, intervenção, direção-fiscal, recuperação judicial ou falência.

As elevadas exigências se aplicam, igualmente, aos agentes de jogos e apostas, que são aqueles responsáveis pela coordenação, condução ou mediação das atividades em nome das operadoras. Não poderão ocupar o cargo pessoas que tiverem sido condenados pelos crimes acima citados.

Há restrições, também, aos jogadores e aos apostadores, estes que deverão ser pessoas físicas maiores de 18 anos e, ainda assim, atender a exigências bastante específicas no que diz respeito à gestão de seu patrimônio.

Estão impedidos de participar de jogos ou efetuar apostas as pessoas naturais (i) excluídas ou suspensas do registro de jogadores e apostadores, mantido pelo Sistema Nacional de Jogos e Apostas (Sinaj), seja por autoexclusão ou por força de decisão judicial; (ii) declaradas insolventes ou privadas da administração de seus bens; (iii) que, nos últimos 2 anos, tenham sido submetidas a processo de repactuação de dívidas; (iv) integrantes de grupo de controle, detentores de participação qualificada, administradores e membros dos órgãos estatutários de entidades operadoras devidamente licenciadas; e (v) que integrem órgãos ou entes com incumbência reguladora ou de supervisão.

Além do Sinaj, o Projeto de Lei também idealizou o Registro Nacional de Proibidos (Renapro), cuja finalidade é o registro de interdições de acesso ao jogo, valendo, inclusive, como mecanismo de controle no ambiente virtual. Por isso, além das condições antes citadas, os estabelecimentos deverão contar com conexão informática para acesso ao sistema central de suporte do Renapro, a fim de comprovar que as pessoas que solicitam entrada em seus estabelecimentos não estejam inscritas naquela plataforma.

Para também protegê-los de eventuais riscos, o Projeto de Lei prevê a instituição da Política Nacional de Proteção aos Jogadores e Apostadores, cuja finalidade é educá-los e informá-los dos riscos inerentes ao jogo e à aposta, sobretudo os transtornos de comportamento a eles associados, apresentando-lhes medidas de prevenção e tratamento.

Estabelecidas as condições para a exploração da atividade, estão também previstas as punições ao seu descumprimento.

Restam criminalizadas as condutas de (i) a exploração de qualquer espécie de jogo, e por qualquer meio, sem a devida autorização; (ii) a má-fé exprimida nos atos de fraudar, adulterar, escamotear ou direcionar resultado de jogo ou aposta; (iii) o pagamento de prêmio em desacordo com a lei, (iv) permitir ou autorizar, sob qualquer forma, transações financeiras por meio de cartão de crédito, empréstimo ou outra espécie de financiamento com empresas ou sítios eletrônicos estrangeiros na rede mundial de computadores que explorem a atividade de jogo e (v) obstar ou dificultar ação fiscalizadora do Poder Público em matéria de jogos e apostas. Com exceção de dois dos delitos elencados, cujas penas mínimas são de quatro anos, os demais, por atenderem aos requisitos da Lei, serão contemplados pelo Acordo de Não Persecução Penal[6] e/ou pela Suspensão Condicional do Processo[7].

Sob o aspecto administrativo, a responsabilização das pessoas jurídicas e físicas que descumprirem as exigências elencadas na legislação será realizada através do Procedimento Administrativo Sancionador (PAS), a ser instaurado pelo Ministério da Justiça.

Concluído este apanhado das principais novidades trazidas pelo Projeto de Lei nº 442/1991, resta concluir que, caso o texto venha a ser aprovado pelo Senado depois de tão longo caminhar, o Brasil se assemelhará a grande parte dos demais países que já regularizaram a prática dos jogos de azar e, com isso, aprimoraram o turismo e a arrecadação dos cofres públicos. Além disso, a atribuição de poder aos órgãos e entidades de controle certamente contribuirá para o afastamento da prática de jogos e apostas de onde hoje se encontram, ambientes inóspitos e, em maioria, delituosos.

Resta-nos, no entanto, a dúvida: as medidas serão suficientes para desestruturar a atividade historicamente associada ao crime organizado?

***

[3] Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=15460>.

[4] “Centenária, resistindo a tudo e a todos, a prática contravencional persiste indene à repressão estatal, graças à simpatia da sociedade, em todos os graus de sua estratificação, a demonstrar, somente por esta realidade inquestionável, que o ‘jogo do bicho’ deve ser descriminalizado, a fim de que possa ser regulamentado e canalizados os seus benefícios para obras de interesse social, a exemplo dos demais jogos de azar existentes e tutelados pelo Estado, passando esta modalidade de jogo a ser tributada, inclusive pela Previdência Social. Os males criminógenos decorrentes do jogo proibido estão diretamente relacionados com a própria ilegalidade de sua prática. Abstraindo-se a sua ilicitude, suprimir-se-á a sua vinculação, em alguns estados, com o crime organizado, tais como grupos de extermínio, tráfico de drogas, lenocínio, sequestro, etc. A prática do jogo, por si, não ofende, não expõe a perigo de lesão ou lesa bens jurídicos fundamentais da sociedade ou do Estado, não sendo relevante, na atualidade, que se o mantenha, demagogicamente, na clandestinidade. A polícia, por maior esforço, não consegue, máxime nas grandes metrópoles, vencer o desafio de reprimir o ‘jogo do bicho’, porque trata-se de poderosa organização, sendo ‘uma guerra contra um inimigo vago, fugitivo, gasoso, mal-definível, raramente localizável’, nas palavras do Douto penalista Marcello Jardim Linhares.

Há delitos graves, hediondos, que estarrecem a sociedade, e que necessitam de árdua e diuturna repressão policial, não a prática de um jogo de azar, enraizado nos costumes, e que somente é ilícito porque a lei o mantém como contravenção penal”. […] Para finalizar esta justificação, é oportuno transcrever o pensamento de Viotti de Magalhães, appud de Marcello Jardim Linhares in Contravenções Penais, Saraiva, Vol. 2, 1980, pág. 489, a respeito do indigitado ‘jogo do bicho’, verbis: ‘Trata-se uma mera infração a uma lei que proíbe a extração dessa loteria. Vale por uma advertência de que ela não foi autorizada. As outras, sim, são as autorizadas. Homens tidos como apoio e da sociedade exploram-nas. Os cidadãos de todas as classes, figuras representativas do clero, da indústria e do comércio, da magistratura e da administração compram os seus bilhetes nessas loterias autorizadas, na expectativa da fortuna sorrir-lhes no giro das esferas. Por aí se vê que a loteria não autorizada está muito longe de constituir infração de preceitos morais. Amanhã o famoso jogo, do qual o Tesouro não tira proventos, poderá ser regulamentado. Os contraventores da véspera deixarão de sê-lo, para se tornarem contribuintes do Estado. Alega-se que os pobres põem toda sua economia nesse jogo clandestino. Será hipócrita quem diga que eles não a ponham em loterias autorizadas, preferindo privar-se de muitas utilidades indispensáveis a deixarem de se habilitar com frações e até bilhetes inteiros de loterias. Essa a realidade crua’.

[5] Cf. PL 1101/91, PL 1176/1991, PL 2826/2008, PL 6020/2009, PL 6405/2009, PL 4062/2012, PL 1471/2015, PL 2903/2015, PL 3090/2015, PL 3096/2015, PL 3420/2015, PL 3554/2015, PL 3815/2015, PL 4065/2015, PL 5782/2016, PL 8972/2017, PL 9192/2017, PL 9711/2018, PL 530/2019, PL 5319/219, PL 5783/2019, PL 585/2020, PL 5234/2020.

[6] Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

[7] Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).

***

(*) Pamela Torres Villar é advogada no escritório Salomi Advogados. Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Integra a Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/SP, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Roberta de Lima e Silva é advogada criminalista. Sócia do escritório De Lima e Silva Advocacia. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-graduada em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Mestranda em Raciocínio Probatório pela Universitat de Girona. Integra o Instituto de Defesa do Direito de Defesa e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. O artigo acima foi veiculado na Revista Consultor Jurídico.

Comentar com o Facebook