‘Bets’ movimentam R$ 130 bi e podem ter impacto na dinâmica do consumo
O aumento dos gastos da população nas apostas esportivas on-line pode ter afetado o processo de recuperação do consumo no país. Consumidores têm gastado mais dinheiro nas “bets” e chegam a usar recursos da poupança nesses aplicativos, o que pressiona o orçamento das classes mais baixas, e afeta uma recuperação mais homogênea e acelerada do varejo, registra reportagem do VALOR.
A constatação é de executivos da Strategy&, consultoria estratégica da PwC, que investigaram a razão pela qual, apesar da melhora dos indicadores de emprego e renda, as classes C e D não têm recuperado o seu poder de compra de forma relevante.
Trata-se de uma indústria que movimentou no país entre R$ 60 bilhões e R$ 100 bilhões em 2023, e para 2024, a projeção é alcançar até R$ 130 bilhões, segundo o estudo da companhia. Equivale, por exemplo, a tudo que a plataforma Mercado Livre, a maior empresa digital da América Latina, deve movimentar em vendas no país em 2024, segundo apurou o Valor.
Em apenas três anos, de 2021 a 2023, foram alocados quase R$ 60 bilhões no mercado de apostas esportivas on-line (veja quadro acima), e ao mesmo tempo, em metade desse período, a massa de rendimento mensal domiciliar encolheu (incluindo os programas de renda).
Esse descompasso reforça a percepção dos especialistas de que os recursos para esses gastos tiveram que ser desviados de outras partes do orçamento dos consumidores. “O que não faz sentido é termos o mais alto nível de emprego com carteira assinada desde 2012, com renda subindo de forma mais ampla [desde 2022], mas não vermos uma retomada forte e consolidada do consumo e da demanda”, diz Gerson Charchat, sócio da PwC.
Uma das hipóteses levantadas pelos consultores está nesse volume de apostas e no risco de endividamento com elas, que estaria “abaixo do radar” do mercado.
Pelos dados do IBGE, a taxa de desemprego no país caiu de 8% para 6,9% no trimestre encerrado em junho, o menor patamar da série no período. Ao mesmo tempo, nos últimos 12 meses, o volume vendido no varejo restrito avançou 3,4%, mas puxado basicamente pelo segmento de farmácias (9,5%), e com queda em varejo de moda, móveis, artigos de uso pessoal e doméstico. Material de construção e atacado alimentar estão estáveis em relação ao ano passado.
No período, além de farmácias, cresceram supermercados, eletroeletrônicos e informática.
Potenciais efeitos do rápido avanço das apostas incluem menores gastos, especialmente, em despesas discricionárias, como lazer, vestuário, higiene e beleza, na visão de Charchat. Ainda há impacto com maiores dívidas em cartões de crédito, usados nas plataformas.
Mas essas mudanças em hábitos podem aumentar o interesse em outras atividades, como em ingressos esportivos ou assinaturas para assistir os jogos.
“Começamos a pesquisar a questão por uma demanda de varejistas meses atrás, que nos chamaram a atenção para esse cenário da força das ‘bets’, inclusive em segmentos que antes não sentiam esse impacto, como moda”, diz Luciana Medeiros, sócia da PwC.
A consultoria fez o estudo com base em informações da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, de dados do Banco Central e de consultorias internacionais.
Dados publicados pelo BC, na balança de pagamentos, mostram que, de janeiro a junho foram US$ 5,3 bilhões, ou R$ 28 bilhões (dólar médio do período), remetidos por brasileiros para fora. O montante, em dólar, é 30,5% acima de 2023. O segundo semestre é, historicamente, mais forte em apostas do que o primeiro, o que ajuda a elevar as projeções do ano.
Segundo os consultores, as apostas representaram 1,38% do orçamento familiar das classes D e E em 2023, e em 2018, eram 0,27% – ou seja, isso quintuplicou em cinco anos, com expansão forte após a pandemia.
Já no orçamento médio familiar, incluindo todas as classes, elas representavam 0,73% em 2023, frente a 0,22% em 2028, portanto, ainda uma alta expressiva, de 3,5 vezes em cinco anos, mas abaixo do verificado nas classes D e E. “É algo que pesa mais para aqueles com renda mais baixa porque eles não têm um orçamento flexível. Se perdem dinheiro ou gastam mais nas ‘bets’, ficam numa situação difícil para fechar as contas, e cortam ou reveem gastos”, diz Mauro Toledo, diretor da Strategy&.
O executivo lembra que a maioria dos apostadores são homens e jovens, logo, são chefes de família com autonomia sobre os gastos, apesar do crescimento no número de lares liderados por mulheres.
Ainda pelo estudo, o montante separado para tentar a sorte nas “bets” representou 4,9% dos gastos com alimentação de uma família no ano passado. A projeção da Strategy& para 2024, é que isso represente 5,5%.
Para se chegar a esses números, o braço de estratégia da PwC considerou projeções de expansão dessa indústria, e comparou-as com a pesquisa de orçamento familiar.
Segundo o levantamento, que inclui pesquisas com consumidores, a proporção dos brasileiros que dizem ter dinheiro sobrando no fim do mês caiu para de 45% para 37% entre 2022 e 2023. Os que enfrentam dificuldades para pagar suas contas, apesar da melhora de renda pelos indicadores, subiram de 16% para 21%.
Outra pesquisa, do Instituto Locomotiva, publicado em janeiro pelo Valor, mostra que 51% dos brasileiros têm utilizado recursos que iriam para a poupança nas apostas.
Empresários do varejo têm acompanhado o tema com preocupação, e começou a ser discutido, em reuniões do setor, de maneira informal, a possibilidade de tomar alguma medida frente a esse cenário, como apoio a campanhas educacionais de planejamento financeiro para a população, diz uma fonte a par da discussão.
A lei que regulamentou a operação das empresas de apostas neste ano, válida para 2025, definiu restrições no horário, canais e formato das campanhas publicitárias, sendo obrigatória a inclusão de avisos de desestímulo às apostas.