Da Sphere à Fórmula 1, Las Vegas se transforma mais uma vez cheia de imensas ambições
Já passa do anoitecer na avenida mais famosa da cidade, a Las Vegas Strip, e o trânsito está parado. Isso é normal para uma noite de fim de semana, mas hoje é segunda-feira.
As obras ininterruptas fazem de cada excursão uma aposta contra o trânsito e, atualmente, parece que todos saem perdendo. Viro à direita na Sands Avenue, logo antes da torre dourada do Wynn Las Vegas, e fico tão atônito com o que vejo que me junto a três dúzias de outros carros estacionados ilegalmente junto à calçada lotada. Algumas pessoas estão sentadas na divisória de concreto, assistindo, apontando a câmera do celular para um espetáculo de outro mundo: um olho colossal, aparentemente do tamanho da Estrela da Morte, olhando para nós. É tão grande e brilhante que os hotéis e cassinos banhados em neon são meras sombras.
E então ele pisca.
É a Sphere, a mais nova e épica atração de Las Vegas. Arena redonda de 110 metros de altura revestida com 1,2 milhão de telas de LED do tamanho de um cinzeiro, a Sphere foi inaugurada no dia 4 de julho. Desde então, exibe fogos de artifício, globos giratórios, desenhos geométricos espiralados e outras imagens em sua superfície de 54 mil metros quadrados, parando o trânsito.
— A Sphere definirá a arquitetura de Las Vegas. Não é só um edifício temático como alguns dos outros pontos da Strip. É como a Sydney Opera House ou a Torre Eiffel; vai se tornar um ícone da cidade — disse Brian Alvarez, conhecido como Paco, ex-comissário cultural e guia turístico.
A Sphere não é a única grande novidade na região. Uma inspeção minuciosa da superfície da Strip revela uma camada fresca de asfalto tão lisa que meia dúzia de skatistas pula uma barreira na rua em frente à fonte do hotel Bellagio para passar por mim no trânsito. Esse asfalto é para carros de corrida. Estende-se ao longo da Strip, depois desvia para as ruas laterais, contorna uma nova arquibancada que se estende por três campos de futebol, circunda o estacionamento da Sphere e volta para a Strip para completar uma pista do Grande Prêmio de Fórmula 1 de 6,1 quilômetros. Na primeira corrida, planejada para 18 de novembro, os carros darão 50 voltas, atingindo até 342 km/h.
Espetáculos e esportes
Cidade que já se recriou várias vezes, Las Vegas está no meio de mais uma reinvenção. O que começou como um pequeno cruzamento de ferrovia no meio do deserto, no início dos anos 1900, tornou-se um destino para jogos de azar legalizados nos anos 1930 que, nos anos seguintes, atraiu mafiosos e outros investidores endinheirados que transformaram Vegas na Cidade do Pecado, com direito a dançarinas e ao Rat Pack. A partir da década de 1980, a concorrência de outros locais com jogos de azar legalizados, como Atlantic City, inspirou os operadores de Vegas a transformar a cidade em um destino atraente para famílias, com grandes resorts e espetáculos para crianças, como um vulcão e batalhas de piratas.
Depois veio a recessão econômica seguida pela pandemia, estimulando a cidade a se diversificar, acolhendo esportes e espetáculos grandes e chamativos. Essa estratégia está funcionando.
Em 2022, a cidade recebeu 38,8 milhões de visitantes, o que a tornou o sexto maior destino turístico dos Estados Unidos, superando Boston e Chicago — o que é impressionante para um lugar onde o clima no verão chega regularmente a 40,5ºC.
Uma série recente de ataques cibernéticos contra os hotéis da cidade, que pode ter resultado no vazamento de dados de mais de dez milhões de hóspedes, parece ter sido apenas um obstáculo para o rolo compressor que é Las Vegas. No entanto, os hotéis da cidade também estão enfrentando a ameaça de uma greve dos trabalhadores do setor hoteleiro, que votaram a favor da paralisação em 26 de setembro.
O aumento repentino dos megaespaços de eventos deslocou o centro de gravidade da cidade, que deixou a relativa privacidade dos cassinos e migrou para espetáculos tão ostensivamente públicos quanto a Sphere depois do anoitecer.
— Isso me lembra muito Dubai. Quando estive lá, só havia estádios em construção e luzes brilhantes. Mas eles têm muitas restrições a como você pode se comportar. Aqui promete ser mais divertido — disse Bridgette Casellas, de 24 anos, atriz que veio de Los Angeles.
— Está difícil descrever o que está acontecendo na cidade neste momento. É uma Vegas 2 ponto 023. Não consigo nem acompanhar todas as mudanças — comentou Alvarez.
E há muitas mudanças para acompanhar: o Allegiant Stadium, que agora se situa uma quadra a oeste da Strip, sediará o Super Bowl LVIII em 11 de fevereiro de 2024. O estádio de US$ 1,9 bilhão é a sede do time de futebol americano Raiders, vindo de Oakland, na Califórnia, há apenas quatro anos.
Do outro lado da Strip, o Hotel Tropicana será substituído em breve por um estádio de beisebol de US$ 1,5 bilhão e 30 mil lugares, que abrigará o time de beisebol Athletics, que Las Vegas também está tentando tirar de Oakland.
A cidade já tem o time Golden Knights da NHL, vencedor da Stanley Cup de 2023. Com a aquisição bem-sucedida do Oakland A’s, a cidade terá completado a impressionante marca de ter três equipes da liga principal dos EUA em sete anos, transformando-a em um destino esportivo durante o ano inteiro. Acrescente-se a isso um contrato de dez anos com a Fórmula 1 e Vegas passa a ser, sem dúvida, um dos destinos mais atraentes do mundo para assistir a esportes, com a Sphere como a cereja do bolo do tamanho de um asteroide.
Com todas as mudanças, não é de admirar que, ao entrar em Las Vegas vindo do deserto, os guindastes preencham a linha do horizonte como uma floresta de metal. Os construtores até tiveram de importar um guindaste especial de 176 metros da Bélgica para construir a Sphere.
— Talvez uns 25% do mercado de viagens não gostem de Las Vegas. Por isso, os esportes e o entretenimento dão a essas pessoas um novo motivo para vir aqui — afirmou Steve Hill, de 64 anos, presidente da Las Vegas Convention and Visitors Authority, uma das principais forças por trás da transformação da cidade.
Ele acrescentou:
— O sucesso do Allegiant Stadium contribuiu muito para o que está acontecendo. Quando o construímos, estimamos que 450 mil visitantes por ano viriam à cidade para participar de algum evento lá. No ano passado, o estádio atraiu 800 mil visitantes a mais. Os esportes e o entretenimento leve são cada vez mais importantes para consolidar a marca de Las Vegas no futuro.
Assentos vibratórios e tecnologia de vento
A Sphere abriu na sexta-feira com a banda de rock irlandesa U2 tocando seu álbum “Achtung Baby”, de 1991. O show deveria ter sido apresentado há dois anos, no 30º aniversário do álbum, mas a pandemia atrasou a construção da Sphere. A banda reservou 25 shows no auditório em forma de bolha com 17.600 lugares, onde o público será cercado por um telão de LED de 14 mil metros quadrados e 167 mil alto-falantes. Outras técnicas imersivas incluem assentos vibratórios e tecnologia de aroma, temperatura e vento.
A Sphere é capaz de parar o trânsito, mas será possível lotá-la? O U2 tocará no local até 16 de dezembro; recentemente, os ingressos variavam entre US$ 268 e US$ 1.240. Mas a Live Nation, que está cuidando da venda de ingressos para a Sphere, ainda estava vendendo ingressos para a estreia de sexta-feira na segunda-feira anterior ao show. Ainda há lugares disponíveis para muitos shows subsequentes, e os ingressos em revendedores como a StubHub estão sendo vendidos muito abaixo do valor nominal, gerando dúvidas sobre se esse será realmente um sucesso de bilheteria. (Um porta-voz da Sphere Entertainment Company não respondeu a um pedido de comentário.)
Entre os shows do U2, o cineasta Darren Aronofsky (“A baleia”) fará sua estreia na Sphere com o filme “Postcard from Earth” na sexta-feira. Aronofsky descreve o filme, filmado em sete continentes com câmeras “Big Sky” de alta resolução projetadas especificamente para a Sphere, como uma “carta de amor à mãe Terra”. Um vídeo curto em seu perfil no Instagram mostra um elefante imponente pisando acima dos assentos da plateia na tela abobadada do auditório. Os ingressos variam de US$ 49 a US$ 199, e será preciso vender muitos deles. Os custos excedentes da Sphere já ultrapassam US$ 1 bilhão. Este ano, a MSG Entertainment, sediada em Nova York e proprietária da Sphere, dividiu-se em duas, mudando o nome da holding da casa de espetáculos para Sphere Entertainment Co., com o objetivo de isolar as principais propriedades da MSG Entertainment e proteger os acionistas existentes.
Um autódromo na Strip
A corrida de Fórmula 1 será centralizada em torno de um paddock recém-construído de US$ 480 milhões e 27 mil metros quadrados — o pit stop para os carros de corrida —, com dois andares de camarotes de luxo, restaurantes e arquibancadas na cobertura.
Não é a primeira vez que a F1 vem a Las Vegas. No início da década de 1980, uma pista de Grand Prix foi construída atrás do Caesars Palace, mas o evento não deu certo, e apenas duas corridas de um contrato de cinco anos foram disputadas antes do cancelamento.
Renee Wilm, CEO do Grande Prêmio de Las Vegas, disse que agora será diferente:
— Aquilo foi em um estacionamento. Agora vai ser na própria Strip, à noite, com todas aquelas luzes. Vai ser o maior e mais glamoroso evento esportivo do mundo.
A popularidade da Fórmula 1 nos Estados Unidos está se acelerando, graças à cobertura da mídia e a programas como “Fórmula 1: Dirigir para viver”, da Netflix. Isso significa que Las Vegas é agora o mais recente de uma dúzia de locais onde a Fórmula 1 esteve nos Estados Unidos, e a cidade inteira parece estar aderindo ao movimento. Ao longo do percurso, varandas, arquibancadas, holofotes e faixas estão transformando as ruas abertas do deserto em uma trincheira de corrida. O entretenimento será oferecido pelo Blue Man Group, pelo cantor J Balvin e pelo Cirque du Soleil ao redor da pista. Em frente aos hotéis Bellagio e Mirage, estão sendo montados camarotes e arquibancadas, e a gastronomia ficará a cargo de chefs famosos como David Chang e Jean-George Vongerichten.
Muitos dos outros grandes resorts estão se mobilizando para criar experiências sofisticadas para os hóspedes mais endinheirados. O mais caro deles é provavelmente o “Pacote do Imperador” do Nobu Hotel, a um custo de US$ 5 milhões, com um Rolls-Royce com motorista, um jantar particular preparado pelo chef Nobu Matsuhisa, cinco noites de hospedagem na Nobu Sky Villa, com três quartos e 950 metros quadrados, além de eventos de corrida particulares para 12 convidados. O passe de três dias mais barato ainda disponível no site da F1 custa US$ 2 mil. Hotéis e restaurantes distantes da pista estão aumentando os preços dos quartos e preparando refeições temáticas.
Por US$ 395 por pessoa, o chef executivo Domenico Ferraro, do restaurante italiano Ferraro’s, a duas quadras a leste da Strip, criou o próprio cardápio para a semana da corrida.
Hill acredita que a Fórmula 1 trará uma vantagem de longo prazo para os negócios de Las Vegas:
— A Fórmula 1 vai trazer cerca de 120 mil pessoas de fora de Las Vegas durante o que é tradicionalmente nosso segundo fim de semana mais lento do ano. Só isso representa pelo menos 60 mil reservas a mais em hotéis. Em última análise, isso nos coloca em um mercado internacional e de alto padrão.
Nem todos estão satisfeitos com essas mudanças.
— Somos totalmente viciados em coisas brilhantes aqui em Las Vegas, mas essa não é uma forma holística de planejamento urbano — observou Dayvid Figler, de 56 anos, advogado de defesa que também é um dos podcasters e comentaristas culturais mais populares da cidade.
E completou:
— O trânsito vem sendo interrompido há anos. Na Strip, árvores frondosas de 25 anos foram cortadas para dar lugar a uma corrida de dois dias. A maioria das pessoas que vivem aqui vai pagar por algo para o qual não foi necessariamente convidada.
— Não vou voltar até que as obras terminem. É um incômodo muito grande — afirmou Casellas, a visitante de Los Angeles, enquanto passava por centenas de pedestres que se moviam em ritmo de zumbi em torno de mais um canteiro de obras de arquibancada.
Antes de ir embora, decidi dar uma última passada na Sphere, tendo finalmente descoberto um ótimo ponto de observação e estacionamento em uma rua chamada Manhattan Street. A enorme esfera estava se transformando de uma bola de basquete gigante em uma água-viva se debatendo na água, e depois em um astronauta correndo no espaço. Não pude deixar de identificar ali várias metáforas para o futuro imediato de Las Vegas, mas a vista era de tirar o fôlego. (O Globo Turismo)