A “Emenda Globo” e o futuro das transmissões esportivas e das apostas no Brasil: proteção ou retrocesso?

Nos últimos anos, a regulamentação das apostas esportivas no Brasil tem sido um dos temas mais debatidos no setor esportivo, jurídico e midiático. Um dos pontos mais controversos, mas pouco comentado, dessa regulamentação foi a introdução da chamada “Emenda Globo”, um artigo de lei que proíbe as casas de apostas de adquirirem, licenciarem ou financiarem direitos de transmissão de eventos esportivos realizados no território nacional.
Essa proibição, aprovada dentro da Lei 14.790/2023, nasceu de uma preocupação central: preservar o modelo tradicional de transmissões esportivas, especialmente o domínio de grandes emissoras nacionais, como a TV Globo.
Mas quais são os reais impactos dessa medida para o mercado esportivo, as casas de apostas, os clubes e, claro, os próprios torcedores? Esse artigo explora os principais riscos e recompensas dessa decisão.
O que é a “Emenda Globo”?
A “Emenda Globo” foi apelidada assim por se alinhar diretamente aos interesses dos grandes grupos tradicionais de mídia, em especial o Grupo Globo, os quais enxergam o avanço das casas de apostas como uma ameaça direta ao seu modelo de negócios. Pela regra atual, sites de apostas com licença para operar no Brasil não podem transmitir diretamente eventos esportivos realizados no país.
E tudo por causa da tal “Emenda Globo”.
Essa vedação foi incluída inicialmente no texto da Medida Provisória nº 1.182/2023 e, posteriormente, replicada, quase em sua integralidade, no artigo 18 da Lei nº14.790/2023, normativo que atualmente rege o mercado das apostas esportivas de quota fixa no Brasil:
Art. 18. “É vedado ao agente operador, bem como às suas controladas e controladoras, adquirir, licenciar ou financiar a aquisição de direitos de eventos desportivos realizados no País para emissão, difusão, transmissão, retransmissão, reprodução, distribuição, disponibilidade ou qualquer forma de exibição de seus sons e imagens, por qualquer meio ou processo.”
A justificativa oficial para a vedação consiste na ideia de que a separação entre mídia esportiva e apostas preservaria o valor dos direitos de transmissão e protegeria a audiência das emissoras. No entanto, os efeitos colaterais dessa medida vão muito além da TV e envolvem diretamente a sustentabilidade do mercado de apostas regulado e o risco de crescimento do mercado ilegal.
Riscos da proibição: migração dos apostadores para mercados alternativos
A experiência global demonstra que a combinação de apostas em tempo real (live betting) e transmissões ao vivo é uma das principais ferramentas de engajamento das casas de apostas.
O problema é que a “Emenda Globo” acaba inviabilizando essa prática no Brasil, o que torna as plataformas reguladas menos atrativas, especialmente para o apostador que já está acostumado a essa integração, algo comum em plataformas internacionais.
A vedação trazida pelo artigo 18 faz com que cresça o risco de migração dos apostadores para sites offshore e para operadores ilegais, já que ambos seguem oferecendo esse tipo de serviço, ainda que fazendo uso de serviços de streaming piratas.
É notório que, a despeito dos esforços dos órgãos de fiscalização do governo, milhares de sites de apostas ilegais seguem ativos e operando no Brasil, mesmo após a regulamentação. Se o apostador brasileiro percebe que os sites licenciados oferecem uma experiência inferior à que aqueles oferecem, ele pode acabar optando por utilizar plataformas não licenciadas, as quais escapam do alcance da legislação nacional.
Essa migração frustraria o objetivo central da regulamentação, que é justamente atrair o apostador para o mercado legal e controlado, garantindo arrecadação fiscal e mecanismos de proteção ao consumidor.
Preservação do controle das transmissões pelas emissoras e plataformas de streaming
É inegável que o artigo 18 da Lei 14.790/2023 gera um alívio estratégico para as emissoras tradicionais, em especial para a TV Globo, ainda mais levando-se em conta o fato de que elas já não conservam a exclusividade das transmissões de futebol, como no passado.
Com a crescente ascensão de plataformas de streaming, como Amazon, YouTube e outras tech companies, que entraram com força na disputa por direitos de transmissão de torneios de futebol no Brasil, o monopólio da mídia tradicional foi quebrado nos últimos anos e o mercado de transmissões esportivas hoje está bastante pulverizado.
Nesse contexto, a proibição da aquisição de direitos por casas de apostas cumpre a função de conter ainda mais a fragmentação da audiência. Sem a concorrência adicional das plataformas de apostas, as atuais detentoras de direitos — sejam elas emissoras tradicionais ou serviços de streaming — preservam maior controle sobre a narrativa esportiva e sobre a precificação e rentabilidade desses pacotes.
Especialmente em torneios de grande apelo, como o Campeonato Brasileiro e a Copa do Brasil, essa limitação restringe a competição a players midiáticos já estabelecidos, mantendo o mercado concentrado entre players tradicionais e gigantes do streaming, sem a entrada de atores vindos do forte setor de apostas esportivas.
Mas o que dizer de competições de menor apelo?
Impacto econômico: perda de receitas para clubes e ligas no longo prazo
Se, por um lado, a “Emenda Globo” protege as emissoras, por outro ela limita a concorrência na compra de direitos esportivos. Ao excluir as casas de apostas desse mercado, os clubes e ligas perdem um potencial comprador (que muito provavelmente elevaria o valor dos direitos de transmissão) e uma fonte adicional de receita.
Além disso, perdem o suporte de agentes que poderiam estar adquirindo direito de transmissão de competições menos importantes, as quais a mídia tradicional não tem interesse de mostrar.
No mercado internacional, é comum, por exemplo, que plataformas de apostas adquiram direitos desses eventos menores que não costumam ter espaço na TV tradicional. Isso gera renda extra e visibilidade para esses eventos. Sem essa possibilidade no Brasil, competições estaduais e regionais de divisões inferiores, por exemplo, e modalidades menos populares deixam de ter uma maior valorização e visibilidade que poderiam ser alcançadas caso a possibilidade de aquisição de direitos pelos operadores de apostas existisse.
Vale destacar que clubes e entidades esportivas, que hoje dependem fortemente de patrocínios de casas de apostas, têm se posicionado contra medidas excessivamente restritivas implementadas pelos órgãos regulatórios.
Nesse contexto, vale destacar que em outras discussões legislativas, clubes da Série A e B já se manifestaram de forma conjunta contra uma emenda que proibiria publicidade de apostas em estádios, demonstrando a importância desse dinheiro para sua saúde financeira.
Esse mesmo raciocínio poderia ser aplicado à proibição de transmissões pelos operadores de apostas já que fechar as portas para o dinheiro trazido pelas bets pode, futuramente, acabar se revelando um tiro no pé para o próprio esporte.
Conclusão: proteção ou retrocesso?
Como demonstrado, a “Emenda Globo” se trata de uma escolha política que busca proteger o modelo tradicional de transmissões esportivas e preservar o controle pelas grandes emissoras sobre esse modelo. Entretanto, não dá pra ignorar que a vedação trazida pela opção que foi feita pelo regulador cria distorções relevantes, tais como:
⇒ Enfraquecimento da atratividade das plataformas de apostas licenciadas, aumentando o estímulo pela busca de alternativas ilegais pelos consumidores;
⇒ Limitação da concorrência nas disputas comerciais por direitos de transmissão, dificultando a obtenção de maiores valores que poderiam ser obtidos pela venda dos direitos;
⇒ Imposição de restrição à obtenção de um tipo importante de receitas por clubes menores e à visibilidade de competições de menor apelo;
⇒ Perpetuação de uma visão antiquada da relação entre esporte e apostas, ignorando a realidade global de integração entre essas indústrias.
Fato é que no longo prazo, essa estratégia tende a se revelar ineficaz para proteger o esporte brasileiro, especialmente por contribuir diretamente para o crescimento do mercado ilegal.
Em meio ao processo de regulamentação das apostas em curso, o Brasil precisa decidir se quer trabalhar pelo futuro da indústria esportiva ou apenas contribuir para preservar um passado que já não existe. A resposta passa por abrir um diálogo real entre todos os atores: clubes, emissoras, operadores de apostas, provedores de serviços, torcedores e governo.
Há um desafio real pela frente que é o de encontrar um modelo equilibrado, que garanta:
⇒ Estímulo à inovação, permitindo novos formatos de transmissão e parcerias tecnológicas entre esporte e apostas possam se fortalecer e não ser mitigados;
⇒ Preservação do valor dos direitos de transmissão para os clubes, sejam grandes ou pequenos, o que não será possível caso se siga abdicando da participação de novos potenciais compradores;
⇒ Proteção ao consumidor (apostador) e ao torcedor, por meio do controle ao estímulo excessivo às apostas.
Achar o equilíbrio de todos esses fatores será essencial para que se possa construir um modelo valioso, sustentável, inovador e seguro, que, futuramente, seja interessante para todos os lados.
(*) Tiago Horta Barbosa é Head of Integrity da Genius Sports para a América Latina, além de integrar o Comitê de Integridade da Federação Internacional de Tênis de Mesa (ITTF).
Possui graduações em relações internacionais e direito, além de pós-graduação em Direito e Gestão do Esporte (FIFA/CIES/UCA) e mestrado em Direito do Esporte (ISDE Madrid).
Trata-se de um profissional com mais de 20 anos de experiência, amplamente envolvido nos campos da segurança pública e cooperação internacional. Atuou ainda como Oficial de Treinamento Policial junto à OIPC-Interpol de 2012 a 2014.
Tiago também tem sido notadamente ativo no setor jurídico-esportivo desde 2015. Ele é especializado em integridade esportiva, com foco nos temas relacionados à prevenção e o combate à manipulação de competições, bem como no impacto dos mercados de apostas no esporte.
Atuou ainda como Diretor de Desenvolvimento de Negócios e Integridade Esportiva na América Latina na Sportradar AG (2016-2019), além de ter ocupado o cargo de Procurador no STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) para o Futebol (2015-2016) e Auditor no Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD) (2020-2024), e assentos em vários comitês de ética e integridade.