O bote do Tigrinho: com luxo e viagens, operadores asiáticos ‘criam’ influenciadores para disseminar sites clandestinos

Apostas I 30.12.24

Por: Magno José

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O bote do Tigrinho: com luxo e viagens, operadores asiáticos 'criam' influenciadores para disseminar sites clandestinos
Nova reportagem do O Globo revela que o aliciamento de brasileiros para propagar os cassinos online é uma das principais estratégias dos responsáveis por plataformas não autorizadas a operar no país, muitas delas suspeitas de fraudes

Morador de Bangu, na Zona Oeste do Rio, Fabiano Tavarez ganhava a vida como funcionário de um supermercado do bairro até ser demitido e ficar sem renda aos 25 anos. A solução para a falta de dinheiro surgiu quando um irmão dele foi abordado na internet por uma chinesa com um convite: tornar-se divulgador de plataformas do Jogo do Tigrinho. A rotina do ex-comerciário do subúrbio passou a incluir passeios luxuosos e viagens para o exterior custeadas pelos sites e exibidas nas redes sociais — só em 2024, ele esteve em Londres, Dubai e nas Maldivas, onde exibiu a nova alcunha de influenciador, Tavarez do Tigrinho, sobre uma moto aquática, revela nova reportagem do O Globo sobre os sites ilegais.

O aliciamento de brasileiros para propagar os cassinos online é uma das principais estratégias de operadores do Tigrinho baseados na Ásia. Como O GLOBO mostrou neste domingo, a plataforma — uma espécie de caça-níquel digital — tornou-se um vetor para fraudes no Brasil com origem em países como Cingapura, Mianmar e a própria China. Embora o jogo em si não seja ilegal, os golpistas atuam clandestinamente e podem tanto adulterar o sistema para diminuir as chances de ganho quanto impedir a retirada de valores, retendo o dinheiro das vítimas.

Os influenciadores são o chamariz de novos clientes. Os acordos com os gerentes das plataformas são feitos informalmente, via redes sociais. O modelo mais comum premia o divulgador a cada quantidade preestabelecida de cadastros que ele atrai, ou garante uma fração do valor gasto em recargas no site. Tavarez conta que recebe até R$ 5 mil por mês, mas que já chegou a conseguir R$ 35 mil de uma única vez.

— Quando a gente se destaca, outros gestores (de plataformas do Tigrinho) entram em contato — relata o jovem, que diz não temer problemas legais pela atividade. — Pago meus impostos. Faço tudo direitinho para não ter problema. Muitos criam coisas que não existem, colocam horários (nos quais seria mais fácil ganhar) para enganar as pessoas. Se você trabalha certo, ninguém te perturba.

Fabiano Tavarez, o Tavarez do Tigrinho: de comerciário do subúrbio a influenciador nas Maldivas — Foto: Reprodução/Instagram
Fabiano Tavarez, o Tavarez do Tigrinho: de comerciário do subúrbio a influenciador nas Maldivas (Foto: Reprodução/Instagram)

‘São emergentes’

Para quem investiga esquemas ilegais ligados ao Tigrinho, o arranjo baseado em comissões garante capilaridade ao negócio. É possível encontrar perfis com menos de cinco mil seguidores divulgando plataformas e participando de viagens e festas suntuosas. Tavarez é seguido no Instagram por pouco menos de cem mil pessoas — ainda distante de grandes influenciadores, que operam na casa dos milhões.

— São emergentes, pessoas que eram de classe mais periférica e têm uma ascensão. Uma das nossas investigadas tinha uma loja de roupa e viu no jogo um novo nicho. Outra já era influenciadora de humor e passou a usar dessa habilidade para engajar o público (nas apostas) — pontua o delegado Lucimério Campos, da Polícia Civil de Alagoas, destacando a grande presença feminina no meio.

Tavarez diz mostrar aos seguidores os ganhos e perdas que registra nos jogos, sem simular vitórias sucessivas. A prática, porém, não é necessariamente regra. A Operação Game Over, comandada pelo delegado Campos em Alagoas, descobriu uma divulgadora negociando R$ 80 mil para difundir uma plataforma. Na conversa obtida pela polícia, ela pede uma “conta demo”, que simula apostas, para não ter de perder dinheiro.

Na apuração, a reportagem adicionou perfis de influenciadores do ramo. Foi a deixa para que começassem a chegar dezenas de mensagens diárias com convites para divulgar jogos de azar. As propostas são acompanhadas de promessas de “salários altos” e afirmações, em geral falsas, de que o grupo está legalizado no Brasil. Para entrar no esquema, deve-se contatar números de locais como Hong Kong e Taiwan.

A divulgação das plataformas também acontece em grupos de WhatsApp e Telegram. Em um deles, com mais de 22 mil membros, gerentes dos cassinos alardeiam diferentes arranjos de retorno financeiro assegurado, inclusive com acesso a uma conta demo — aquela que evita prejuízos. Milhares de mensagens são publicadas em um único dia.

'Gerente' de plataforma chinesa, Xiaomai costuma compartilhar cliques com maços de dinheiro e cordões de ouro — Foto: Reprodução/Instagram
‘Gerente’ de plataforma chinesa, Xiaomai costuma compartilhar cliques com maços de dinheiro e cordões de ouro (Foto: Reprodução/Instagram)

Os asiáticos, muitos com perfis fakes, adotam ferramentas de tradução para se comunicar com os brasileiros. Um deles se identifica apenas como Xiaomai e costuma compartilhar cliques com maços de dinheiro e cordões de ouro ou ao volante de uma Mercedes. O contato por um número estrangeiro leva a uma mensagem automática em português informando que ele lança “de quatro a seis plataformas toda semana” e citando um “modelo de cooperação” com salário de “50% do montante” obtido em depósitos. Xiaomai não respondeu aos pedidos adicionais de esclarecimentos.

Investigadores avaliam que a ostentação é central na promoção do esquema. Nem sempre, contudo, ela se dá com carrões e luxo. “Pode não ser muito para algumas pessoas, mas para uma mãe de três crianças é vida. Minha primeira máquina de lavar e secar paga com o Tigrinho”, escreveu a influenciadora Nanda Oliveira com uma foto abraçada ao eletrodoméstico. Procurada pelo GLOBO, ela afirmou que só divulga casas de aposta que estão “na lista para regulamentação”.

— Eles precisam do status para atrair o público. Esses grupos fazem uma engenharia social e desenvolvem um tipo de influenciador, em geral um cara que veio de baixo e cresceu jogando no Tigrinho — explica o delegado Márcio Rocha, da Polícia Civil de Minas Gerais, que já conduziu inquéritos sobre esse ecossistema.

A passagem e a estadia em destinos como Maldivas, Tailândia e Finlândia são integralmente bancadas pelos donos dos sites. Compartilhados nas redes, os eventos atrelam os jogos de azar à ascensão social.

— A gente não paga nada. Só temos de divulgar e bater 50% da meta antes de ir — resume Tavarez, o jovem de Bangu.

Mayane Marques posou com boneco do Tigrinho em evento — Foto: Reprodução/Instagram
Mayane Marques posou com boneco do Tigrinho em evento (Foto: Reprodução/Instagram)

Há versões menos luxuosas dessas agendas, com viagens a destinos no Brasil, como Gramado e Porto de Galinhas, ou jantares de menor porte. Nelas, os influenciadores chegam a surgir ao lado de pessoas fantasiadas de Tigrinho — caso de Mayane Marques, que soma pouco menos de 17 mil seguidores no Instagram. “Olha aí quem eu achei aqui. Vou mandar soltar a carta para vocês”, escreveu ela, que bloqueou a reportagem após ser contatada sobre sua atuação.

Muitas postagens são ao som de um funk que se tornou uma espécie de hino informal da categoria: “Que te pega, que te banca, patrocina dessa forma/Não é o velho da lancha, é os cria da plataforma”, diz a letra dos MCs N10 e Theu Cba. Outros hits seguem a mesma linha, alimentando a mística dos sites de aposta. No último dia 17, o funkeiro Oruam e o sertanejo Zé Felipe, que juntos somam 15 milhões de ouvintes mensais nos streamings, lançaram a parceria “Dinheiro do tigrinho”, com menção direta a supostos ganhos com as plataformas.

‘Big boss’ em Dubai

O elo dos influenciadores com o Tigrinho nem sempre se esgota na propaganda. Após o Ministério da Fazenda anunciar medidas para regularizar o setor, o LG Grupo comunicou ter iniciado o processo para obtenção da outorga de funcionamento no país. O CNPJ exibido nas redes, porém, pertencia a outra empresa: a Luck Gaming Ltda., que já tem aval do governo para operar.

— Soubemos quando um dos apostadores lesados entrou em contato, pedindo a devolução de um saldo — conta Lincoln Pinto, sócio da Luck Gaming. — A gente passa pela regulamentação, e mesmo assim o jogador fica submetido a isso. Imagine se não houvesse? Ele estaria desprotegido.

Dias após o desmentido nas redes, o LG Grupo apresentou outro CNPJ: o da Luck Games Soft, registrada em São Paulo em 26 de setembro no nome de Hudson Castro de Sousa. Na mesma semana, uma comitiva de brasileiros chegou a Dubai para encontrar membros do grupo chinês.

Hudson Sousa posta com o "big boss" — Foto: Reprodução/Instagram
Hudson Sousa posta com o “big boss” — Foto: Reprodução/Instagram

Entre eles, estava o influenciador Hudson Sousa, que divulga diariamente sites de apostas para 16 mil seguidores. No Instagram, ele e os colegas de viagem deixaram registrada a rotina ao lado dos “patrões” asiáticos, o que incluiu um jantar na casa do “big boss” (o “grande chefe”).

A Luck Games Soft passou a usar o fato de ter um CNPJ no Brasil e o pedido de autorização junto ao Ministério da Fazenda como prova de sua lisura. A outorga, contudo, ainda não foi concedida, e seu modo de operação segue distante das regras estabelecidas pela pasta. O governo estipulou, por exemplo, um máximo de três plataformas por empresa, enquanto o grupo chinês soma dezenas de sites ativos simultaneamente, com lançamentos constantes. O GLOBO procurou a Luck Games por email e pelo perfil de Hudson no Instagram, mas não houve retorno.

 

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